Sobre Pornografia, de Witold Gombrowicz

...Gombrowicz constróí um tipo decaído de conto de fadas, de um onirismo sombrio...

Embora escrito nos anos 1960, e tendo como ponto de vista um narrador mais velho, Pornografia é um primo de romances como Jakob Von Gunter, de Robert Walser, ou o Jovem Torless, de Robert Musil, ou mesmo as narrativas de Kafka, isto é, Gombrowicz constróí um tipo decaído de conto de fadas, de um onirismo sombrio, uma narrativa sonâmbula dotada de uma estranheza infantil, onde os personagens parecem crianças inquietas e curiosas em relação ao mundo, que parece um lugar incomensurável e desconhecido.

As frases de Gombrowicz esgarçam o estranhamento até uma região desconhecida dos leitores, o planeta que seus personagens habitam não é o planeta terra como conhecemos, mas um outro lugar banhado no horror. A narrativa se passa na Polônia de 1943, ocupada pelo nazismo, e assim como os romances de Walser e Musil com que se assemelha, Pornografia é uma história que constrói um clima de opressão totalitária de forma sutil, por meio do psicológico dos personagens. O narrador, chamado Gombrowicz, supõe uma relação entre os meninos Karol e Heina, e com seu amigo Fryderyk buscam separar a moça de seu noivo Waclaw, em um plano estapafúrdio, por meio de relações paranóicas. Tudo é estranho, o narrador parece alucinar diante de uma realidade instável e às vezes afirma com convicção impressões sobre os outros que não nos parecem claras, outras o mais trivial parece assombroso, em diluição. Na viagem para a casa onde acontecerá a narrativa, o narrador se põe a observar Fryderyk, e as frases que sua máquina narrativa coloca em cena são as seguintes:

Em determinado momento, o crepúsculo — esta substância que devora as formas — começou a apagá-lo lentamente, e ele se tornou invisível no arremessado e sacolejante vagão que adentrava a noite e induzia a um estado de não-existência. Isso, porém, não aniquilava a sua presença, que apenas passou a ser menos visível; protegido pelo véu da invisibilidade, ele permanecia tal como era. De repente, as luzes se acenderam, tornando-o outra vez visível, mostrando seu queixo, os cantos de sua boca cerrada e suas orelhas… mas ele não se sobressaltou; com os olhos fixos numa corda que balançava, ele simplemente existia!

A definição que ele dá ao crepúsculo, e depois o assombro com a existência e presença do seu amigo Fryderyk na viagem, são indicativos desse clima que o narrador cria ao descrever o seu mundo. Em outro trecho, uma entrada em uma igreja se transforma em uma experiência cósmica:

A igreja deixou de ser igreja. Foi invadida pelo espaço, mas um espaço cósmico, negro, e isso já nem se passava na terra, porém, mais precisamente, a terra se transformara num planeta colado no universo; o cosmo tornou-se presente, e era nele que tudo acontecia. A tal ponto que a luz das velas e mesmo a luz do dia que atravessava os vitrais tornaram-se escuras como a noite. Portanto, já não estávamos numa igreja, num vilarejo, nem mesmo na terra, mas — de acordo com a realidade, sim, de acordo com a verdade — em algum ponto do cosmo, suspensos com nossas velas e nossos resplendores, e ali, no meio daquela imensidão, realizávamos aquelas coisas estranhas, conosco e entre nós, como macacos fazendo caretas para o espaço vazio. Aquilo era uma peculiar provocação de nós mesmos, lá longe, na galáxia, uma provocação humana na escuridão, uma surpreendente gesticulação no abismo, estranhas contorçõesnas imensidões astronômicas. E esse afogamento no espaço era acompanhado por um tremendo reforço daquilo que era concreto — estávamos no cosmo, no entanto éramos uma coisa assustadoramente definida, descrita com todos os detalhes.

No meio da trama, os eventos nos desviam da insólita história de amor que parecíamos assistir para nos inserir numa narrativa de crime e mistério (Gombrowicz constrói em vários de seus romances desvios na forma do policial), combinando então o plano nonsense de Fryderyk e do narrador de unir o casal de jovens com os eventos absurdos envolvendo personagens que parecem despencar na narrativa. O mundo de Pornografia é governado por uma estranha lógica. Ao final tudo faz sentido como uma brincadeira mórbida e curiosa, um final feliz por meio de um plano maquiavélico e uma inocência maliciosa e sanguinária.

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