O livro de Otessa se constrói com um material que bebe dos seriados e das comédias românticas que buscam representar a cultura millennial, embora por se situar entre os anos 2000 e 2001 ele possa ser considerado um tipo de romance histórico.
Com a psicanálise ou a linguagem medicalizada de nossa época a protagonista poderia ser definido com poucos golpes de palavras: luto pela morte dos pais, depressão pela falta de interesses na vida.
Os personagens secundários são poucos, mas significativos. Os destaques são Trevor, a mãe da protagonista e Reva.
Trevor, o caso não oficial que ela carrega por tantos anos é o tipo de figura clichê de nossa época que cabe em alguma definição de masculinidade tóxica saída do buzzfeed. Trevor abusa da protagonista como se ela fosse um utensílio, a trata como estepe emocional e pratica todo tipo de violência.
Sua mãe, morta em um possível suicídio, paira como uma imagem de remorso, já que ela e a narradora nunca se deram bem.
Reva, melhor amiga da protagonista, conheceu a mesma na faculdade e parece ter sido seu último elo com o mundo, a única figura a irromper em seu apartamento para ter conversas íntimas.
O enredo é pueril. A protagonista, após experiências terríveis na vida familiar e no amor, e após uma experiência no mercado da arte que lhe rende apenas desdém, decide passar um ano se aproveitando do desleixo de sua psiquiatra e se entope de remédios, com o projeto de passar um ano inteiro dopada, assistindo os mesmos filmes em seu videocassete (com destaque para os filmes estrelados pela Whoopi Goldberg) e saindo esporadicamente para comprar café ruim e porcarias no estabelecimento de alguns imigrantes egípcios. A amizade com Reva, que ela desdenha, ao final funcionará como uma lição para seu próprio egoísmo. A autodestruição acarretada pelo vício em remédio é contada com ar cartunesco, colorido, mas aqui e ali a pintura pop vai sendo borrada por elementos mais sombrios.
A narrativa se move por truques baratos. O Infermiterol, o medicamento mais forte tomado pela protagonista, faz com que ela perca a memória recente, o que a leva a recobrar a consciência muitas vezes em meio a situações aleatórias: com Trevor gozando em seus peitos; depilada e usando um maiô por baixo da roupa; vestida com um casaco de pele caro e luxuoso, à caminho do velório da mãe de Reva. Esse mecanismo engenhoso também é um índice da necessidade que a protagonista tem de desligar do mundo ao seu redor e ter experiências de qualquer ordem, mesmo que perigosas.
O fato mais interessante da narração em primeira pessoa é que a narradora transmite ou quer transmitir muito conhecimento de si, mas esse auto-centramento não se representa em transparência para os leitores. Falando de si mesma o tempo todo, muito dela fica sem nos ser revelado, sugerindo antes que ela própria não se conhece tão bem assim, ou que todo o conhecimento sobre a própria vida não a impede de evitar o sofrimento, fora o óbvio fato de que ela não é uma narradora confiável e omite de nós informações cruciais.
O suicídio é uma sombra em toda a narrativa, não só porque o comportamento da protagonista é o de flertar com a morte. Talvez um dos momentos mais aterrorizantes da narrativa seja aquele que acontece no capítulo seis, quando a narradora vai até o apartamento de Reva para pegar seus remédios de volta. O local parece uma espécie de caminho para o Hades, ainda mais caótico do que o apartamento da protagonista:
“Na cozinha, um bolo ressecado com marcas de dedos jazia no balcão, ao lado de um tablete de manteiga que não era manteiga de verdade e de um frasco de xarope de bordo sem açúcar. Montanhas de louça suja sobre a pia. Uma pequena lata de lixo transbordando de embalagens de junk food e de cabinhos de maçã. Metade de um waffle torrado coberto com manteiga de amendoim, um saco de cenourinhas escurecidas. Latas amassadas de 7 UP diet lotavam uma caixa de papelão ao lado da lata de lixo. Havia latas de 7 UP diet por toda a parte. Um copo de suco de laranja com mosquitinhos boiando na superfície.
(…)
“O banheiro parecia o camarim de duas gêmeas adolescentes se preparando para um concurso de miss. Dava pra sentir cheiro de mofo, vômito e desinfetante. Uma caixa de ferramenta cor-de-rosa abarrotada de pincéis e aplicadores de todas as formas e tamanhos, maquiagem de farmácia, esmalte, provadores furtados, uma dúzia de tons de brilho labial Maybelline. Na prateleira, dois secadores de cabelo, um modelador, uma chapinha, um recipiente só de presilhas e tiaras de plástico. Recortes de revistas de moda colados na borda do espelho e no armário embaixo da pia. Um anúncio da Guess com Claudia Schiffer. Kate Moss num jeans Calvin Klein. Silhuetas magérrimas de supermodels. Linda Evangelista. Kate Moss. Kate Moss. Kate Moss. Um pote de bolas de algodão e cotonetes. Uma tigelinha de grampos. Dois frascos enormes de Listerine. Ao lado da caneca que devia ter uma dúzia de escovas de dente, todas elas de cerdas amareladas e gastas, um frasco de Vicodin. Vicodin! Prescrito pelo dentista. Ainda tinha doze comprimidos. Tomei um e enfiei o resto no bolso. Debaixo da pia, mais remédios num cesto de vime com uma fita cor-de-rosa no tampo — uma relíquia da Páscoa, imaginei. Quando Reva a comprou, deve ter vindo com ovinhos de chocolate. Liquidação. Agora tinha Lasix, ibuprofeno, Mylanta, Dulcolax, Reductil, Buscofem, aspirina, Anfepramona. Atrás do armário, uma sacola de presente da Victoria’s Secret enfiada num canto. Dentro dela, a glória! Meu Stilnox, meu Rozerem, meu Lorax, meu Frontal, meu Donaren, meu lítio. Seroquel, Imovane. Valium. Eu ri. Chorei. Meu coração finalmente desacelerou. Minhas mãos começaram a tremer um pouco ou talvez estivessem tremendo o tempo todo. “Graças a Deus”, eu disse em voz alta. A corrente de vento bateu a porta do banheiro com um estrondo comemorativo.”
Reva é descrita ao longo do livro como uma amiga simplória, com uma vida amorosa em crise: é a amante do chefe cafajeste. Também faz o luto da mãe, mas a narradora não consegue conectar sua dor a dela (reside nisso inclusive grande parte da carga emocional do livro, evidente mas nunca anunciada como tal: a dor das duas amigas poderia ser partilhada de forma mais intensa, mas essa partilha nunca acontece. O óbvio tema do narcisismo poderia ser muito desenvolvido aqui). A conclusão da narrativa nos leva a ver como a protagonista estava cega ao desespero de Reva. A amiga é vista quase sempre como alguém querendo se adequar, pertencer ao ideal de sucesso feminino, o que envolve carreira, aparência e amor. Mas Reva é abandonada, e morre, não se suicidando, mas no fatídico capítulo final, do tamanho de um microconto.
A imagem em loop das torres gêmeas formam um enigma interessante. Podem indicar o reingresso na lógica autodestrutiva da qual ela parecia ter saído. Mas também parece nos convidar a ler toda a narrativa pregressa como um pedido de desculpas para a falecida amiga.
O corpo em desequilíbrio, em descompasso com o mundo, é o foco de onde a narrativa avança. O corpo padrão, privilegiado, mas que não vê propósito e não tem interesse no modo como o mundo se encontra. A indústria farmacêutica engole esse corpo, que entra no ritmo ditado pelo informiterol (uma droga fictícia, exagerada, mas perfeitamente convincente enquanto uma droga que parece adequada para um tempo futuro para onde a nossa sociedade medicada caminha). A narradora tem toda sua percepção e experiência de tempo e espaço condicionado artificialmente, uma forma de vida limitada ao contato com o videocassete e eventuais humanos. O circuito da arte entra nesse mundo de forma confusa, através da exposição de Ping Xi, que a veste de gueixa e a fotografa quando ela está dopada. Essa segunda natureza artificial avança sobre o corpo humano e o transforma temporariamente em um ser a-social, cuja utopia maior é a perda de consciência e o sono é seu reino encantado.
Um retrato da bárbarie embrulhado em embalagem colorida, concebido em uma época na qual até as emoções viraram rótulos e o mundo é sentido por meio de notícias e gravações mais do que através do tato. Um caso limite em que a construção de anteparos aos choques da modernidade leva ao infermiterol, que precisa desligar a consciência; de forma sorridente e cômica, a narradora nos diz que não é mais possível viver da mesma forma e que nossa mente não é mais páreo para o grande desastre que é o mundo lá fora.