Um comentário sobre Diário de um ano ruim, de J.M. Coetzee

Sobre a obra de Coetzee

Diário de um ano ruim é, tal qual outros livros de Coetzee, como A vida dos animais e Elizabeth Costello, um romance que explora as tensões e possibilidades entre o relato ficcional e a escrita ensaística. Diferente dos dois outros livros, aqui não é a prosa das conferências e reflexões teóricas que é evocada, mas um estilo de texto entre o comentário político, a crônica de costumes e a coluna de opiniões. A primeira parte, chamada de opiniões fortes, parece nos apresentar um diário, marcando as datas entre os anos de 2005 e 2006, mas na verdade nos oferece comentários sobre a origem do estado, Hobbes, Maquiável, o olhar de um estrangeiro sobre a democracia e a vida na Austrália, entre outros temas. O espanto começa quando vemos que no rodapé das páginas uma história ficcional ocorre, o encontro entre um escritor octogenário que se identifica pelas iniciais JC e uma moça filipina chamada Anya, pela qual ele se sente fisicamente atraído e que acaba sendo contratada por ele como datilógrafa/editora dos textos que estávamos lendo, as opiniões fortes que são atribuídas então a esse personagem. Qual não é nossa surpresa quando um novo texto se abre ao pé da página, onde a relação entre esses dois personagens é narrada, só que agora do ponto de vista da mulher, introduzindo também a relação que acontece com seu marido, um homem truculento que trabalha no mercado financeiro chamado Alex.

O romance arma então uma condição de simultaneidade que exige que o leitor faça opções dentro do ato de leitura. A princípio, o que parece é que cada pequena faixa de texto termina na mesma página. Mas logo nos damos conta de que há um continuum que precisa ser negociado pelo nosso olhar. A página de papel do romance está coberta por três faixas ou janelas que se comunicam, com os personagens reagindo ao ensaio principal escrito por JC. Não demora a percebermos, é claro, a confusão entre vida e personagem, já que JC são as iniciais do autor, e o personagem, apesar de mais velho que Coetzee quando da publicação do livro, também é um escritor africano premiado morando na Austrália, também é vegetariano, além de outros dados biográficos que embaralham a nossa identificação entre autor e narrador.

Alex serve como um contraponto às ideias sofisticadas, mas escritas de maneira simples e direta, de JC. Ambos representam um mundo dos homens de cultura, mas em polos opostos. JC é o homem da literatura e da teoria, sendo assim um homem que parece estar do lado do dispêndio, da inutilidade, da inadequação e até certo ponto do isolamento em relação ao caminhar do mundo. Já Alex é o homem pragmático, das finanças, dos resultados e vantagens econômicas. JC elabora uma teoria que relaciona moral e matemática, enquanto que para Alex tudo não passa de frivolidade e a matemática serve apenas como instrumento de cálculo e de efetivação de processos científicos. É um diálogo entre ciência formal e arte que se desenvolve entre os dois, mediado por Anya, uma figura que adquire mais dignidade conforme a história avança, o romance sendo também a narrativa de formação e solidificação de uma amizade entre ela e o melancólico escritor.

A segunda parte do romance contém opiniões que são apresentadas como mais brandas. Ganha força aqui um tom mais confessional, no qual o narrador lamenta sua velhice e observa como a perda de energia sentida pelo corpo afeta sua escrita, cada vez mais desprovida de descrições e elementos que, segundo o clichê, dotam um romance de concretude realista. O livro Diário de um ano ruim funciona como uma traição dessa ideia, mostrando um escritor no auge de sua capacidade criativa, estabelecendo uma forma híbrida e arriscada na qual a apresentação de ideias e o diálogo entre personagens ficcionais se confunde e se estabelece a partir de uma forma original de montagem. O diálogo entre faixas de escrita distintas faz com que as ideias reverberem, como a estranha e polêmica posição do escritor sobre pedofilia e arte. O romance funciona então como um campo de ideias novo e uma afirmação da escrita de ficção e suas possibilidades para o conhecimento humano. As últimas reflexões do narrador são uma confissão emocionada a respeito do impacto que Dostoiévski e Tolstói, como figuras de sua admiração, tem na sua escrita e na sua vida, ele humildemente se colocando como um leitor e escritor-admirador dessa obra, levando adiante o tipo de prática reflexiva a partir da arte que esses autores efetuaram, mas a seu modo. Diário de um ano ruim é, em sua forma, um atestado da vitalidade da forma romance e das possibilidades do pensamento através da arte como uma maneira de apresentar ideias de uma forma distinta da filosofia e da ciência, hibridizando diário, diálogo, ensaio e confissão.

Sobre Zero e Não Verás País NenhumSobre Mongólia, de Bernardo Carvalho