Mongólia faz parte de uma série de romances de Bernardo Carvalho que se propõe a elaborar um tipo problemático de “ficção etnográfica”. Se em Nove Noites, romance anterior à Mongólia, mergulhava-se nos confins do Brasil, nesse último se abraça uma viagem a um país cultural e geograficamente distante como forma de narrar a desaparição e a impossibilidade de descrever e compreender um país, ou de estranhar a própria identidade diante daquilo que é diferente.
Reencontram-se neste livro vários temas e questões presentes em obras anteriores de Bernardo Carvalho, mas desta vez a forma de organização narrativa se modificou. Assim como nos romances As Iniciais, Medo de Sade e Teatro, os temas do duplo, da repetição, dos falsos discursos, das ficções que deslocam e desestabilizam a identidade seguem presentes, mas agora ao invés da estrutura em díptico encontrada em trabalhos anteriores, quando um capítulo espelhava o outro ao mesmo tempo em que o desmontava, temos uma estrutura que ao longo dos capítulos — são dois grandes capítulos centrais e um último que funciona como epílogo— mistura diversos registros e vozes narrativas. Temos o narrador, que organiza o discurso a partir de duas fontes: o relato do chamado ocidental, que viajou até a Mongólia à procura de um jovem desaparecido, e os trechos do diário deste jovem. O narrador faz com que essas vozes se confundam e formem um único grande discurso onde as diferenças de opiniões vão se tornando mais sutis. Ao invés de uma narrativa fragmentada, que valorizaria as quebras e os intervalos, temos um texto que emula a busca vivida pelos personagens. São capítulos e parágrafos longos, que criam no leitor a sensação de estar em um labirinto aberto.
Também o leitor precisa ficar atento quanto ao tipo de relatório de viagem que está sendo oferecido. Tudo bem que o romance emula muito do estilo da crônica em um território estranho, mas o narrador coloca em dúvida muitas dessas descrições e opiniões quando ressalta que o ocidental e o jovem desaparecido possuem uma visão preconceituosa, recheada de estereótipos. No começo do romance o narrador nos descreve as opiniões do ocidental sobre a China, absurdos emitidos apenas quando ele ainda tem apenas uma leve impressão a respeito do país. O interessante é que quando a voz narrativa reflete sobre essas opiniões, no presente, seis anos depois dos eventos narrados, ele constrói uma visão mais piedosa e generosa do autor dos diários: “Demorei a perceber que havia humildade na sua aparente arrogância, e que ao fazer as suas asserções levianas, no fundo ele estava apenas tentando compreender. Suas provocações eram um pedido de ajuda, que alguém lhe esclarecesse o que tentava entender desesperadamente” (p.23). Nesse momento ele interpreta o modo desse explorador lidar com o que lhe é diferente, o que nos faz suspeitar das afirmações e conclusões desse homem a respeito da Mongólia. Nos diários e impressões de viagem estão opiniões que devem ser vistas com suspeita, ao mesmo tempo que expressam um desejo forte de compreender o que lhe é estrangeiro.
A falta de entendimento é algo que se alastra por toda a narrativa. O ocidental desconfia até mesmo de seu guia e motorista, bem como das pessoas que encontra ao longo da viagem que vai se tornando cada vez mais errática. Por vezes ele se pergunta se o percurso feito possui algum sentido, ou tudo não passa de uma coleção de mentiras e acasos. A descrição das paisagens sempre aponta para um vazio que emana das montanhas e lagos para tomar conta da linguagem. Os nomes passam, os encontros e lugares mudam, mas a sensação é a de que não saímos do lugar. O relato ensaia um tratado sobre o nomadismo, que poderia ser resumido nas palavras do explorador e do jovem desaparecido:
“A repetição é a condição de sobrevivência. É essa também a cultura dos nômades. Apesar da aparência de deslocamento e de uma vida em movimento, fazem sempre os mesmos percursos, voltam sempre aos mesmos lugares, repetem sempre os mesmos hábitos; O apego à tradição só pode ser explicado como forma de sobrevivência em condições extremas. A ideia de ruptura não passa pela cabeça de ninguém. As estradas só se tornam estradas pela força do hábito; o caminho só existe pela tradição. É isso na realidade o que define o nomadismo mongol, uma cultura em que não há criação, só repetição. Decidir-se por um caminho novo ou por um desvio é o mesmo que se extraviar. E, no deserto ou na neve, esse é um risco mortal. Daí a imobilidade dos costumes.” (p.138)
Se lembrarmos do alerta do narrador, lemos esse longo trecho como um conjunto de impressões que diz mais sobre o ocidental e o desaparecido do que sobre traços da sociedade mongol. Aliás, o que o romance propõe de fato é a imprevisibilidade de qualquer definição exata sobre um povo ou região. As ideias sobre o nomadismo habitam conflituosamente o romance, que por sua vez encena esse nomadismo, na verdade, através da linguagem, apagando os traços e singularidades da viagem e com isso formando uma imagem do mundo. A ideia de nação e de identidade cultural são problematizadas, não como se elas não existissem, mas como se fossem problemáticas demais para serem esgotadas pela linguagem. Leve-se em conta também a dificuldade que esses personagens brasileiros sentem de traduzir esse mundo mongol em termos aproximados: alguns locais de moradia são comparados a casas nordestinas, a imagem de uma deusa budista lembra uma entidade brasileira etc.
Todos esses artifícios, junto com os diários que se conectam, os jogos entre os duplos-irmãos, fazem aos poucos com que essa Mongólia ficcional desfaça as fronteiras e se transforme em um deserto mítico, um mundo feito de palavras, cada vez mais imaterial. Sentimos que uma única viagem acontece, a individualidade dos personagens se apaga diante das planícies, montanhas, desertos e lagos. Da mesma forma, é como se o narrador quisesse diluir o leitor no texto, fazer com que as descrições desorientem, engulam o leitor, num relato que parece dar vida a um planeta que não existe, uma Mongólia artificial, lida com desconfiança e preconceito.
Dentre as histórias e impressões sobre a Mongólia destaca-se a lenda de Narkhajid, uma “divindade feminina de aparência demoníaca que representa a força interior necessária para dominar os desejos, as paixões e as ilusões” (p.100). A lenda de Narkhajid é uma força guiando o romance. Muita gente não a conhece ou não consegue a explicar muito bem. O jovem desaparecido mergulha em uma busca por mais detalhes sobre a lenda e desaparece. Há versões conflitantes e por vezes parece que os personagens mongóis inventam a lenda e acrescentam detalhes para alimentar as fantasias ocidentais.
Perto do fim do romance descobrimos uma enigmática versão contada por um falcoeiro, na qual na verdade ao invés de acontecer a violação de uma jovem por um velho monge, como aprendemos ao longo da narrativa, na verdade somos apresentados à versão na qual um jovem garoto é que foi violado pelo ancião. O guia mongol que acompanhou o ocidental e o desaparecido toma essa variação da história como um insulto, uma tentativa de provocar e humilhar sua cultura, o que é estranho, visto que o guia já vinha também dando mostras de um comportamento homofóbico. Cria-se a dúvida: por que a narrativa contada fora vista como uma ofensa? No fim, temos uma estranha lenda sobre desejo e sexualidade soterrada em meio a mentiras e histórias mal contadas, uma série de repressões faz com que um enigma se instaure dentro da religiosidade e do romance, o que nesse sentido parece também uma fábula oblíqua sobre a busca de si e do próprio desejo.
Dentro dessa fábula sem moral, por fim, uma palavra deve ser dita sobre o comunismo. Ele funciona no romance como uma sombra violenta, uma tentativa de substituto da religião, mas perecendo diante da força do budismo. Essa visão corrobora com a ideia de uma sociedade refratária às mudanças, como se fosse quase impossível sobrepujar as tradições milenares, capazes de se adaptar a sistemas econômicos e sobreviver, carregando tensões e imagens de utopia dentro dela, muito mais poderosas e duradouras, embora muitas vezes ocultas e enigmáticas.
Ironicamente, toda essa dificuldade envolvendo traduções e definições contrasta com a transparência e a simplicidade com que o narrador alega ter escrito o romance. O narrador, um idoso, diz ter escrito o livro em apenas sete dias, que na verdade ele praticamente “se escreveu sozinho”, a partir de anotações dos diários do ocidental e do desaparecido. Nada digno de mais desconfiança, já que o narrador fez o trabalho de montar, selecionar e organizar partes desses diários, ou, em outros momentos, descrever e interpretar o que ocorreu. Suas digitais estão impregnadas em tudo, não há nada em Mongólia que não seja filtrado por ele. Todas as fábulas e histórias aqui contadas giram no vazio, permanecendo apenas como esqueletos de uma história que aponta apenas para sua própria urdidura e artificialidade.