Sobre três filmes recentes de Abel Ferrara

Em uma entrevista recente, questionado sobre toda a cultura do cancelamento...

Tommaso

Em uma entrevista recente, questionado sobre toda a cultura do cancelamento, Ferrara disse entender, como budista, que as pessoas precisam lidar com seu karma, com as consequências do passado.

A palavra karma parece ser o motor das cenas de Tommaso, organizadas de modo a formar uma espiral de repetição de alguns motivos, gestos e situações. Só que conforme o filme avança tudo piora na vida de Tommaso e o clima vai se tornando mais agressivo e mais insano, embora ao mesmo tempo este seja um filme na maior parte calmo, meditativo e contemplativo, suave para os padrões do diretor.

As cenas oníricas adicionam sentidos e expressam os conflitos internos de Tommaso por meio de uma linguagem mais irreal. Estas cenas se entrelaçam com os momentos envolvendo estudo e reflexão. O filme começa em uma sala de aula onde Tommaso aprende um novo idioma. A palavra no quadro é o adjetivo corajoso. No decorrer das cenas essa palavra também parece ecoar nas cenas, como se o filme nos dissesse que simplesmente viver exige muita coragem (de novo o karma de lidar com suas decisões equivocadas do passado). O Estudo também está na prática do grupo de teatro, o que rende reflexões sobre a arte, sobre as possibilidades de se expressar. Estudo também através da sala de trabalho de sua casa, onde as ideias do filme Sibéria começam a tomar forma. Extrapolando um pouco, também as confissões no grupo de alcoólicos anônimos fazem parte de uma elaboração sobre o passado e sobre o eu de Tommaso.

O casamento em crise e as caminhadas pelas ruas de Roma consumam esse filme que nos apresenta o Estilo Tardio de Ferrara. Elementos do passado ainda estão lá. Há muitos corpos femininos nus, por exemplo, e a cena inicial de sexo (com a atriz que é aliás esposa de Ferrara), é intensamente erótica, com um clima que está muito de acordo com o ritmo geral do filme, mais sensual do que vulgar. É um Ferrara que se repete, mas o faz de modo diferente. Estudo.

A cena que melhor representa esse espírito de recomeço é obviamente a última, na qual a criança (vivida pela própria filha de Ferrara) dança de forma angelical banhada pelo sol. Ela aparece como o emblema de um recomeço, como o sinal de que a vida continua e pode ser diferente. Mesmo se repetindo o tempo todo é isso que Ferrara parece querer, também, nos falar a cada plano: as coisas podem ser diferentes. É doloroso, mas é preciso continuar. Este é um filme em que o diretor parece tardiamente recomeçar, reelaborar a própria obra a partir de traços do passado.

Siberia

Siberia

Grandes filmes dos últimos anos, assinados por autores como Scorsese, Tarantino e Spike Lee, podem ser vistos como meditações sobre a figura masculina na sociedade e no cinema, de formas diversas: Irishman foi recebido como uma reflexão sobre a ideia de filme de máfia, mas também sobre o ocaso de uma determinada forma de cinema; Era uma vez em Hollywood parece com a brincadeira de menino de Tarantino, uma maneira de refletir sobre uma época que marcou a infância e a subjetividade do diretor, como se o filme fosse uma autobiografia conceitual; finalmente, Spike Lee, mais diretamente político, em Da 5 Blood pensou o corpo do homem negro, o sofrimento racial, o desvio da energia das utopias dos anos 1960 para alimentar ideais reacionários, sem deixar de refletir de um ponto de vista racial sobre o cinema de guerra americano. Como pano de fundo dessas reflexões masculinas, e de autores masculinos consagrados, obviamente está o movimento #metoo e toda a discussão sobre representatividade na arte que hoje questiona o cinema de autor consolidado.

Isso tudo tem a ver com Sibéria porque o filme também pode ser lido como a visão peculiar de um cineasta (independente e longe do mainstream, no caso de Ferrara) sobre um mundo que passa a questionar a figura masculina, a autoridade paterna, o lugar de um determinado tipo de cinema que Ferrara sempre esteve implicado e que continua a fazer, que explora o desejo, o olhar, o corpo feminino e lida com figuras vampirescas e excessivas, problemáticas.

A resposta de Ferrara a essas questões é mais espiritual e metafísica, e também mais descontrolada, mais aberta à experimentação. Há uma escolha de exploração de imagens que parece meio desgovernada, mas ao fim se unifica em torno dessa ideia de uma jornada interior, por isso se permitindo articular diversos níveis e não prezar pela coerência imediata.

Como em outros filmes do diretor, em especial os mais recentes, a autorreferencialidade nos chama atenção: não sabemos explicar muito bem o motivo, exceto o fato de que velhos temas do diretor como a culpa, a violência e outros reaparecem aqui, continuando a produzir rimas e novos sentidos. Mas talvez o mais interessante seja conter o afã por ler esse filme como uma autobiografia de Ferrara e mais observar como ele e seu parceiro Dafoe formam um tipo de entidade que partilha imagens e problemas abertos que, por sua vez, conseguem se ligar ao espectador com muito mais força. Se a gente pensa em um filme como I’m thinking of ending things, o mais recente filme do Charlie Kaufman, vê que o projeto de Sibéria é exatamente o oposto, embora também guiado por uma ideia de exploração de imagens e experiências interiores de um personagem masculino: Kaufman parece querer fechar e resolver tudo, explicar, deixar tudo mastigado para o espectador, enquanto Ferrara jamais faria um filme com esse intuito, tudo em seu filme parece convidar em primeiro lugar à experiência visual, ao teste, ao risco; é um tipo de investimento que chega a ser frágil e parece prestes a desmoronar ao avanço de cada sequência, mas se mantém em pé, embora de forma incômoda (e justamente aí está seu poder).

Muitos já sugeriram que Sibéria bem poderia ser visto como formando um díptico com Tommaso, e de fato as duas obras parecem se comunicar imensamente: em Tommaso temos um personagem que busca reconstruir sua vida, seguir em frente, confessar seus demônios interiores em reuniões de ex-usuários de drogas, mas ainda tropeçando nos mesmos problemas do passado; em Sibéria temos um sujeito igualmente atormentado, mas cuja solução é mergulhar no isolamento, caminhar em direção à natureza apenas para encontrar a si mesmo e ao seu tenebroso inconsciente. Enquanto Tommaso parece ser um filme que afirma a vida apesar de tudo, Sibéria ecoa como o filme da morte e da escuridão do ser, sobre como nunca conseguimos nos afastar muito tempo de nós mesmos e somos o que somos. Nisso, é interessante como filmar a imensidão natural torna-se uma jornada interior, como o sublime aterrador da natureza conduz ao passado, aos fantasmas e medos internos do protagonista. Não se trata de uma terapia, mas de uma intoxicação visual que se propõe a falar com a moral de uma época, mas também com cada espectador individualmente.

Sportin’ Life

Um companheiro de viagem para Tommaso e Sibéria, fechando uma trilogia de intensa colaboração entre Dafoe e Abel Ferrara. O mundo do diretor aqui reunido é um diário onírico e metafórico, com uma linguagem mais próxima de seus últimos filmes, mais dedicado a criar entrelaçamentos entre diversas áreas de interesse que formam o mundo de Ferrara e com isso construir uma conceituação do ano de 2020 em sua vida do que em fazer um diário literal. A música se faz presente nos shows de blues da banda de Abel; a vida como um diretor respeitado é registrada no dia a dia de entrevistas e de divulgação de Sibéria, sua obra mais recente; imagens de seus filmes novos e velhos aparecem para produzir rimas com a história presente e o mundo, e finalmente a política aparece com toda intensidade, dando mais carga ao que é a estética do documentário: as falas imbecis de Trump são organizadas em um calendário que mostram o quão pequeno foi o presidente durante a crise do Corona Vírus; o discurso indignado de AOC ganha a tela, mostrando da parte de Ferrara um certo encanto com a nova líder de esquerda, enquanto que o plano final do filme mostra o assassinato que desencadeou a nova explosão de mobilizações do Black Lives Matter.

Assim como Tommaso, sinto que a ideia budista de Karma guia de algum modo as escolhas que formam esse documentário. É possível lê-lo como uma espécie de resultante quando pensamos a combinação que Tommaso e Sibéria formam. Sportin’ Life é um documentário que pensa a vida como uma dádiva, apesar de toda a dor e do sofrimento do mundo. As imagens da crise da Covid, com as ruas de Roma vazia ou os paramédicos novaiorquinos chorando diante das mortes não contrasta com a energia dos shows de blues, mas forma um todo em que as imagens da pandemia se unem às imagens da política presente, ao cinema e a declarações para a imprensa, formando através de imagens os conceitos e a filosofia de Abel Ferrara. No começo, o diretor diz que esse não é um documentário sobre Sibéria, mas um documentário sobre fazer documentários, no que ele parece estar certo se entendermos esse filme como uma tentativa de filmar o presente, de capturar o agora de forma particular. O método do diretor se revela a cada momento, mas também em suas entrevistas, quando o mesmo declara, e nisso é respaldado por Dafoe e até seu diretor de fotografia, que não sabe exatamente o que está acontecendo durante as filmagens: seu cinema é guiado pelo desejo, pela vontade de filmar, e o processo parece muito coletivo, ouvindo a todos e criando uma autoria aberta, com uma jogada por vez, utilizando truques do passado, mas sabendo que “você não pode abrir portas novas com chaves antigas” como o próprio diretor diz. É um diretor que testa, que não procura, mas encontra o que quer sempre, através da experimentação. Seu senso de criação e direção é prático e ao mesmo tempo sofisticado. Quando ele diz que existe um jeito de contar histórias, que se Alice entra na toca do coelho ela precisa sair, e que, no final, Ulisses sempre volta pra casa, é difícil não se deixar impressionar por esse que é também um grande contador de histórias, alguém que sabe conduzir com segurança seus projetos, verdadeiros suspiros de liberdade.

Como vinte e quatro máquinas de calcular nas portas do infernoSobre Zero e Não Verás País Nenhum