Sobre Linha M, de Patti Smith

“Procuramos ficar no presente, mesmo quando os fantasmas tentamos desviar.”

“Procuramos ficar no presente, mesmo quando os fantasmas tentam nos desviar.”

O envolvimento que Linha M nos provoca se deve à capacidade de Patti Smith em elaborar uma prosa que nos parece um chamado à companhia, o convite a uma conversa entre apaixonados por arte e literatura como modo de acalentar a solidão que é ler e conviver com livros. Seu romance pode ser lido como uma longa e apaixonada conversa sobre a literatura contemporânea, o luto de modo geral e o amor que cultivamos por nossos ídolos intelectuais.

Patti possui uma forte imagem de artista por ser uma rockstar celebrada no mundo inteiro, mas curiosamente sua posição é de alguém que está à margem no terreno da literatura, onde ela ainda se constrói e aspira ao panteão dos grandes escritores como seus ídolos Bolaño, Mishima e Sebald. O desejo pela escrita forma uma existência simples, perseguindo lugares específicos em cafés, buscando pequenas epifanias e escritas, realizando visitas aos túmulos de seus heróis, como Akutagawa, ou à residência de Frida Kahlo. Patti Smith é uma fã.

Patti existe também como uma dândi, ou a figura consagrada que é, vivendo uma vida de artista, semi-vagabunda, ou se concedendo “luxos” como dormir em hóteis na Inglaterra apenas para assistir a programação de séries de detetives, sua obsessão atual (o que a transforma em um tipo de personagem de Bolaño, obcecada por séries como The Killing e pela engenharia dos seriados policiais).

Mas existe toda uma meditação sobre a perda ao longo do livro, exposta desde às visitas aos cemitérios, ligada também ao hábito da leitura e principalmente à saudade de seu ex-marido Fred Sonic Smith, ex-guitarrista do MC5. A perda é reiterada quando ela recorda das desaparições de objetos, como o bonequinho de seu ex-marido na infância, o casaco que ela ganhou de presente de um amigo e desapareceu, a devastação após a chegada do furacão Sandy, que aniquilou toda uma área onde ela estava construindo sua nova casa. Essa perda e esse esquecimento são parte dela como leitora, um sentimento que sempre existiu em sua vida:

“No início da adolescência eu ficava lendo horas a fio num pequeno bosque perto da linha de trem em Germantown. Assim como o personagem Gumby, eu entrava num livro de corpo e alma, e ás vezes me aventurava tão a fundo que era como se vivesse nele. Terminei muitos livros desse jeito ali; fechando a última página, em êxtase, mas enquanto voltava para casa, não me lembrava mais do seu conteúdo. Isso me perturbava, mas não revelei aquela estranha aflição a ninguém. Olhava para as capas daquelas obras e seus conteúdos permaneciam um mistério que eu não conseguia decifrar. Eu adorava certos livros, vivia com eles, mas não conseguia rememorá-los”.

É uma relação antes de tudo apaixonada e mística com a leitura, mais do que cerebral e teórica, e sempre se registra um abandono e uma perda, uma melancolia diante do que se tem em mãos. Esteja ela no Japão ou na Inglaterra, no fundo sua narração sempre volta a meditar sobre a perda e a partida das pessoas, coisas e paisagens:

“Entrei na picape de Winch. Não falamos muito, os dois perdidos nos próprios pensamentos. O trânsito estava bom e chegamos em mais ou menos quarenta minutos. Nos encontramos com os quatro sujeitos que formavam a equipe dele. Trabalhadores dedicados, atentos às suas tarefas. Notei que todas as árvores do meu vizinho estavam mortas. Eram as árvores mais próximas das minhas. As imensas ondas que haviam inundado as ruas tinham matado a maior parte da vegetação. Inspecionei tudo o que havia para ver. As paredes de papelão mofadas que separavam pequenos aposentos haviam sido arrancadas, abrindo um grande salão com o teto abobadado de um século intacto, e o assoalho apodrecido estava sendo removido. Senti que havia algum progresso e saí dali um pouco otimista. Sentei no degrau improvisado do que seria a minha varanda depois da reforma e imaginei um quintal com flores silvestres. Ansiona por alguma permanência, acho que eu precisava ser lembrada do quanto a permanência é passageira. “

Mesmo sem escamotear a dor e a angústia, se entregando ao choro quando julga necessário, a narrativa de Smith se oferece como um relato apaixonado diante da experiência de viver e diante do amor por coisas como o café preto bem quente, a leitura, os amores, as amizades, a escrita e o prazer das viagens e fotografias.

O que Trotsky tem a dizer sobre o fascismo?Sobre As Coisas, de Georges Perec